26 de outubro de 2011

O papel do Cognitor

Publicado na Revista Mineira de Contabilidade, v.9, 1º trim., p.38-41, 2003.

RESUMO
Se o ensino contábil não está dando aos futuros profissionais os conhecimentos adequados para que eles possam exercer plenamente as suas funções, não é recomendável defender, compensatoriamente, a criação de novas profissões. É o caso, mais recentemente, do cognitor. As profissões, no Brasil, são criadas por Lei, e não pela iniciativa das associações profissionais. As entidades de defesa, representação e fiscalização profissional deveriam unir esforços para modificar o currículo das escolas e o tempo de duração dos cursos
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PALAVRAS-CHAVE: Profissão contábil; cognitor; ensino da contabilidade.

ABSTRACT
If accounting educational institutions are not providing the new professionals with the knowledge they need to fully accomplish their functions, it is not proper to defend, as a compensation, the creation of new professions. This is the case of the newly created “cognitor” profession.  In Brazil, liberal professions are created by Law, and not according to the initiative of professional associations. Professional defense, representation and supervision entities should act together in order to change faculty curricula and to make their courses longer.
KEYWORDS: Accounting profession; cognitor; accounting education.


De tempos em tempos, temos notícia do surgimento de novas profissões: controller, auditor, consultor, perito, cognitor... O Vice-Presidente Técnico do Conselho Federal de Contabilidade, contador Irineu de Mula, concedeu entrevista ao Jornal do CFC, em março de 2001, na qual explicou a importância do cognitor. Três respostas dadas pelo contador Irineu de Mula, de um total de nove questões, merecem atenção especial. A primeira resposta, diz respeito ao surgimento do cognitor:
Várias profissões, entre elas a nossa, exigem uma necessidade muito grande de conhecimentos. Isto é, a pessoa tem que saber mais do que a própria profissão. Não existe no mundo contador que se preze que não tenha bons conhecimentos de economia, administração, direito comercial, direito tributário. Podemos dizer que existe uma invasão de áreas separadas. O “Cognitor” é o profissional que faz essa ligação entre as diversas áreas do conhecimento.
A segunda, trata dos caminhos pelos quais a nova profissão vem entrando no Brasil.
Está iniciando por São Paulo, mas o fato de ter nascido lá fora é só um detalhe, pois temos de admitir que temos muito pouca pesquisa aqui no Brasil. De qualquer forma, o conceito “Cognitor” já está sendo discutido nas reuniões do Comitê dos Contadores de Língua Latina (CILEA), no IFAC e agora pelo Conselho Federal de Contabilidade, que, por sinal, está mais uma vez de parabéns. Mais uma vez, o CFC saiu na frente nesta discussão da qualidade do trabalho contábil e da valorização da nossa profissão.
A terceira, fala de quanto será o investimento mundial na criação da nova profissão:
A implementação do conceito “Cognitor” teve início há quase dois anos, quando foi criada uma organização mundial chamada Instituto Global de Cognitores (GIC), uma instituição sem fins lucrativos e que está sendo financiada por fundos dos 18 institutos fundadores. Taxas de admissão e pagamentos de sócios proporcionarão renda para cobrir os custos para sua devida divulgação e implementação. Espera-se que a operação comece a gerar fluxo de caixa positivo no fim de 2004. Os fundadores do GIC esperam investir, até 2005, cerca de US$ 565 milhões — até lá, espera-se que o GIC tenha entre seus membros e operadores cerca de 660 mil profissionais.
Gostaríamos de propor, antes de mais nada, um posicionamento crítico com relação ao esforço por parte de instituições do campo contábil apontado pelo colega Irineu de Mula em sua entrevista. Não podemos concordar que o assunto seja encarado por todos, pelos profissionais e pela sociedade como matéria vencida, com “trânsito em julgado”. Nosso propósito é abrir uma linha de discussão para que outros colegas reflitam sobre o tema e comecem a questionar não apenas este caso em particular, mas a esse sucessivo surgimento de novas profissões.
Em primeiro lugar, no Brasil, quem estabelece as condições para o exercício das profissões regulamentadas é o Congresso Nacional. Portanto, nesse sentido, o Brasil é diferente de outros países. Enquanto em outros países quem define quem “faz” ou “deixa de fazer” são as associações profissionais. Em nosso país, é a Lei, aprovada pelo Poder Legislativo e sancionada pelo Presidente da República. Dessa forma, para se criar uma nova profissão é necessário elaborar um projeto-de-lei estabelecendo as atribuições do novo profissional, quem o habilitará e fiscalizará e onde os mesmos serão formados. O projeto deverá ser aprovado na Câmara e no Senado e receber a sanção presidencial. Trata-se, na verdade, de uma exigência constitucional. Diz a Constituição Federal, no inciso XVI de seu artigo 22:
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
(...)
XVI – (...) condições para o exercício das profissões
É importante registrar que no Brasil atuam no sistema monetário três profissões: a de contador, a de economista e a de administrador. Cada uma dessas profissões recebeu por lei um elenco de funções correspondente à formação obtida pelos profissionais nos cursos superiores.

Contador

O Decreto-Lei 9.295, de 27.05.1946, que dispõe sobre o exercício da profissão contábil, assim se manifestou a respeito de suas atividades:
Art. 25. São considerados trabalhos técnicos de contabilidade:
a) organização e execução de serviços de contabilidade em geral;
b) escrituração de livros de contabilidade obrigatórios, bem como de todos os necessários no conjunto da organização contábil e levantamento dos respectivos balanços e demonstrações;
c) perícias judiciais ou extrajudiciais, revisão de balanços e de contas em geral, verificação de haveres, revisão permanente ou periódica de escritas, regulações judiciais ou extrajudiciais de avarias grossas ou comuns, assistência aos Conselhos Fiscais das sociedades anônimas e quaisquer outras atribuições de natureza técnica conferidas por lei aos profissionais de contabilidade.
Economista

 Quanto aos economistas, o Decreto nº 31.794, de 17.12.1952, que regulou a Lei nº 1.411, de 13.08.1951, a qual dispõe sobre o exercício da economia, assim estabeleceu:
Art. 3º. A atividade profissional privativa do economista exercita-se, liberalmente ou não, por estudos, pesquisas, análises, relatórios, pareceres, perícias, arbitragens, laudos, esquemas ou certificados sobre os assuntos compreendidos no seu campo profissional, inclusive por meio de planejamento, implantação, orientação, supervisão ou assistência dos trabalhos relativos às atividades econômicas ou financeiras, em empreendimentos públicos, privados ou mistos, ou por quaisquer outros meios que objetivem, técnica ou cientificamente, o aumento ou a conservação do rendimento econômico.
Administrador

Para os administradores, por sua vez, o legislador assim se manifestou sobre os afazeres desta categoria, quando aprovou a Lei nº 4.769, de 09.09.1965, alterada pela Lei 7.321, de 13 de junho de 1985:

Art. 2º. A atividade profissional de Técnico de Administração será exercida, como profissão liberal ou não (vetado), mediante:
a) pareceres, relatórios, planos, projetos, arbitragens, laudos, assessoria em geral, chefia intermediária, direção superior;
b) pesquisas, estudos, análise, interpretação, planejamento, implantação, coordenação e controle dos trabalhos nos campos da administração (vetado), como administração e seleção de pessoal, organização e métodos, orçamentos, administração de material, administração financeira, relações públicas, administração mercadológica, administração de produção, relações industriais, bem como outros campos em que esses se desdobrem ou aos quais sejam conexos;
c) (vetado).
Em suma, pode-se afirmar que:

CONTADOR: Estuda os elementos monetários que compõem o patrimônio das pessoas jurídicas, detectando os problemas e recomendando as soluções.

ECONOMISTA: Estuda e elabora políticas com o objetivo de manter ou aumentar o rendimento econômico das pessoas jurídicas.

ADMINISTRADOR: Estuda os recursos de que dispõem as pessoas jurídicas (capital, natureza e trabalho), para melhor aproveitá-los na solução de seus problemas e assim atingir os objetivos traçados.

O sucesso do sistema de produção de bens e serviços se dará pelo funcionamento harmônico e integrado das profissões de contador, economista e administrador.

Evidentemente, o ideal seria que o profissional possuísse as habilidades das três profissões, além dos conhecimentos jurídicos. Contudo, não podemos deixar de lembrar que as profissões de contador, administrador e economista são profissões afins. A formação de cada um desses profissionais prevê a aquisição de conhecimentos básicos das outras duas profissões. Se estes conhecimentos estão sendo mal desenvolvidos, é preciso, então, rever os conteúdos e sugerir mudanças.
Para o contador, além dos conhecimentos nas áreas de administração e economia, seria necessária uma formação que provesse um conhecimento mais sólido da área do direito, já que as funções da contabilidade contemplam um amplo número de atividades ligadas à legislação tributária, trabalhista e societária.
Nós acreditamos que os esforços no sentido da criação de supostas novas profissões, na verdade, são distorções que encobrem a dura realidade de que nossos profissionais estão saindo dos cursos superiores mal qualificados. E é nesse sentido que deveríamos concentrar nossos esforços: no sentido de ajustar o ensino com as necessidades do mercado do profissional da contabilidade, já que o ensino não está indo ao encontro daquilo que o mercado exige do contador. Preferimos, portanto, encarar o surgimento dessas novas profissões antes como um sintoma do que como uma solução. Se temos consciência das necessidades que o mercado impõe ao contador, então perguntamos: por que não trabalhamos no sentido de assegurar que os currículos das faculdades contemplem aquilo que está faltando aos profissionais, ao invés de ficarmos dando novos nomes às coisas? Quando oferecemos à sociedade um produto “novo” (um novo profissional), criamos uma expectativa que precisa ser contemplada. Do contrário, o preço a ser pago será mais desvalorização profissional para toda a classe.
No último Congresso Brasileiro de Contabilidade, realizado em Goiânia (GO), de 15 a 20 de outubro de 2002, apresentamos um trabalho intitulado “O ensino da contabilidade no século XXI”. No trabalho, propomos uma forma de integrar as disciplinas técnicas necessárias para que o contador tenha condições de exercer plenamente suas atividades a partir daquilo que os micro e pequenos empresários poderão vir a exigir do profissional. Desde o conhecimento do funcionamento de um sistema de registro contábil até a elaboração das demonstrações contábeis, incluindo o estudo do funcionamento de todas as rotinas que envolvem os departamentos fiscal e de pessoal dessas empresas (desde a elaboração da folha de pagamento até a emissão das guias informativas e de arrecadação).
A economia brasileira, hoje, depende quase que totalmente das pequenas e microempresas. Tais empresas não têm condições de contratar profissionais das diversas áreas para orientá-las. Elas contratam um único profissional, um contador, para cuidar de todas as áreas: contabilidade, pessoal, fiscal. O contador acaba se tornando, involuntariamente, um confidente, um psicólogo amador. Esse profissional que a sociedade está exigindo, encontra-se disponível no mercado? As faculdades estão formando esses profissionais? Não. E por que não? Porque o ensino passou a ter finalidade predominantemente econômica. Os cursos têm que ser de curta duração. Cursos longos deixaram de ser atrativos. O curso de Ciências Contábeis era realizado em quatro anos e meio. Esse prazo era insuficiente para o desenvolvimento de todos os conhecimentos necessários à formação de um bom profissional. Somavam-se a este prazo os três anos do curso técnico em contabilidade. Hoje extinguiu-se o curso técnico e querem reduzir o curso de Ciências Contábeis para três anos de duração. Por que isso? Porque está faltando uma ação mais efetiva das entidades que fiscalizam e defendem a profissão para mostrar à sociedade que se for reduzido o tempo de formação, serão excluídos tópicos curriculares indispensáveis à formação do profissional. Os profissionais não terão como desenvolver suas atividades em consonância com as exigências do mercado. A maior prejudicada nisso tudo é a sociedade, que acaba não sabendo a quem recorrer.

Conclusão

Defender a criação de novas profissões  para atender às necessidades do mercado é uma forma de isentar-se de responsabilidades que nós, como professores e membros de entidades de defesa e representação classista, temos para com a formação dos profissionais. Apoiar a aplicação de milhões de dólares (sobretudo em propaganda) na criação de uma nova profissão, visando justificar, perante a sociedade, a sua necessidade, é ir em direção contrária aos interesses dos contadores e da sociedade. Sob esse aspecto, o pioneirismo do Conselho Federal é criticável.
Se a profissão contábil está sendo desenvolvida com carências por parte dos profissionais, não se pode transferir a eles toda a responsabilidade. Essa responsabilidade deve ser partilhada também entre os órgãos governamentais de educação superior, o Conselho de Contabilidade, os sindicatos. Diante da recusa dos órgãos responsáveis em alterar o rumo das coisas, é preciso alertar a sociedade para que ela tome a iniciativa e exija mudança de direção.
O curso de contabilidade deveria estar estruturado de modo a viabilizar a transmissão de conhecimentos que vão ao encontro das necessidades do mercado. Os cursos não poderiam ser estruturados a partir do seu tempo de conclusão. Essa inversão de valores faz corrermos o risco de desenvolvermos cursos com carências fundamentais ao futuro profissional. A estrutura dos cursos de Ciências Contábeis deve contemplar, no mínimo (e prioritariamente),






Ao invés de aplicarmos recursos humanos e materiais na criação de novas profissões (ou mascaramento das velhas), precisamos —  e com urgência — concentrar esforços no sentido de convencer o Ministério da Educação de que em quatro anos não é possível formar contadores. Na melhor das hipóteses, estaríamos formando, neste período, bons técnicos em contabilidade.
Precisamos nos solidarizar com a sociedade na exigência de profissionais capazes. E a capacidade se adquire nos bancos escolares. E assim, certamente, qualificaremos o ensino e aumentaremos a duração dos cursos de contabilidade.

Referências bibliográficas

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05.10.1988.
BRASIL.  Decreto-Lei n. 9.295, de 27 de maio de 1946. Cria o Conselho Federal de Contabilidade, define as atribuições do Contador e do Técnico em Contabilidade, e dá outras providências.
BRASIL.  Lei n. 1.411, de 13 de agosto de 1951. Dispõe sobre a profissão de economista. 
BRASIL.  Lei n. 4.769, de 09 de setembro de 1965. Dispõe sobre o exercício da profissão de administrador e dá outras providências.
DAGOSTIM, Salézio. Reestruturando o ensino da contabilidade para o século XXI. Porto Alegre: Edição do Autor, 2000.
MULA, Irineu de. Profissão contábil deve trabalhar com estratégia e novos conhecimentos. Brasília: Jornal do CFC, março de 2001, p.5. Entrevista concedida ao Jornal do CFC.

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